quarta-feira, 20 de junho de 2012

Humor Finado e Refinado - O Reencontro de Millôr Fernandes e Chico Anysio


Chico Anysio: “Não tenho medo de morrer, tenho pena.”
Millôr DEFINITIVO - MORTE (P. 317)
  • Pensamento final, de todo o mundo: “Mas já? E por que eu? Por que tão cedo? Por que assim? Por que pra sempre?”
  • A morte mata. É sua função e ela a exerce. Ao contrário da vida. Não existe a expressão; a vida vive. A morte me apavora. Não só a morte final. Também, e sempre, a morte diária, o resgate, tento a tento, do tempo que me deram de vida. A hora que passa. O instante que flui (...)
Enquanto Millôr se aproximava do paraíso notou duas coisas: primeiro que errara em ter sido ateu; segundo que isso não faria a menor diferença. Caminhava e percebia que o mito terrestre de um “paraíso celeste” também fazia sentido. Estava num local especial: mesmo a metáfora em que pensou, de um cinema “1.440 graus em 4D”, deixava a desejar. Constantemente via pelo menos uns duzentos pores concomitantes do Sol. Todos diferentes pois vivenciava várias linhas de tempo conjugadas. Começou a entender o conceito divino de onipresença quando percebeu várias explosões de supernovas, instantâneas transformações de sóis em gigantes vermelhas, buracos negros em mútua “digestão” gravitacional. Ao som divino de pássaros eternos.
Ao se aproximar de um portão de entrada, atentou-se a uma confusão danada. Parecia haver uma celebridade no meio do tumulto. Havia: era o Chico, vestido de Salomé e cercado por arcanjos guarda-costas que tentavam tirá-lo do meio da multidão de almas humanas e criaturas divinas que o cercavam.
Assim que viu Millôr, que também era Fernandes, o Chico, que também era Anysio, transmutou-se em Profeta Jesuíno. Jogou-se no meio da multidão e conseguiu fugir.
O comediante pegou o escritor humorista pelo braço e disse: “vamos ver algum pôr do Sol”. Descobri um lugar onde acontecem um de cada vez. Correram calados. 
Chegaram à beira de um lago e se sentaram sob uma árvore. Imediatamente caíram em suas mãos lindas frutas, doces e saborosas. “Agora sei do que é feito o tal manjar dos Deuses” – disse Millôr.
Chico falou: “Precisamos procurar o Tom”. 
 “Você vai cantar agora?”. Balançando a cabeça, o morto mais experiente disse: ”Não. O Jobim”.
 “Eu topo; eu ´tô mesmo precisando de um cachorro engarrafado para repensar meu ateísmo.”
 “Millôr, você não ´tá entendendo... Estamos vivendo – é... modo de dizer -  o maior paradoxo de todos.”
“ Me conta! ´Tô curiosíssimo!”
“Cara, Deus é brasileiro mesmo. Isso aqui é uma merda, mas é legal. Precisamos falar com o Tom, que morou em NY e no Rio, e já deve estar lá dentro há tempos. Ele precisa nos explicar como essa coisa funciona. Acho que é meio como um purgatório entre o Brasil e os Estados Unidos, saca?”
“Não estamos no tal do Paraíso?”
“Estamos. Só que, se bem entendi, o inferno não existe. E esse paraíso aqui é uma zorra total.”
“Como assim? Por que aquela multidão? Por que os arcanjos?”
“Até onde entendi foi o seguinte: quando eu morri deu algum problema no sistema de TI e apareceram registros de todos os meus personagens. Os duzentos e nove e mais alguns que nem eu mesmo me lembrava. Eu expliquei para eles que devia haver algum erro, mostrei meu RG, habilitação, passaporte, carteira de trabalho, CPF, certidão de nascimento, crachá da Globo. Mas tinham instalado um novo software, chamado ZAP - ou algo similar -  e não teve jeito. Até agora não entrei.”
 “Como assim? Não dava para consertar?”
“Que dava, dava... Mas especulavam que seria caríssimo. E parece que o Espírito Santo já andara reclamando dos custos, cortando orçamentos. O Pai convocou o Comitê Executivo do Paraíso, o ComExPar, para lidar com meu caso. Vieram com a solução de eu incorporar cada personagem; eu entraria, e poderiam dar baixa no processo específico; daí eu incorporaria o personagem seguinte e seria expulso. Entraria como este novo, respeitando o procedimento do tal sistema de informáticaa.”
 “Deus me livre! Quero dizer... Acho que Ele não vai conseguir, né? Que trabalheira?!”
“Na verdade, eu até que gostei... Um gran finale. E resolvi deixar o Caetano Codó para ser o último, pois aí...”
“Pô Chico, ´tá de sacanagem comigo?! Homenagear político? E logo esse? Meu mais eminente odiado?”
“Millôr, pega a piada. Imagina esse político no paraíso? Seria o meu canto do cisne humorístico! O auge da ironia cômica! Depois eu entraria como eu mesmo. A ideia era boa. O fato é que começamos; só que o tal do ComExPar não pensou em algumas consequências. Na prática, a teoria é outra. Primeiro, um monte de gente, muito acima da capacidade do lugar, se aglomerou. E o que deveria ser um desentrave burocrático, um jeitinho brasileiro, virou um show de Humor. Gente de mais e os arcanjos perderam o controle.”
”Caramba. Entendi!”
“Acha que entendeu... Até aí estava tudo legal, pacífico. O problema foi quando incorporei a Salomé. Um vice-presidente levantou a mão e disse que Salomé não podia, pois isso caracterizaria um travesti e pela política católica tal e tal e coisa... O caso teria que ser levado a uma discussão no Comitê Consultivo Celeste. O pior é que foi o mesmo executivo pretensamente onisciente que tinha dado a inovadora ideia de como ‘burlar’ o sistema. Maria ficou do meu lado; todas as almas de falecidos do partido republicano americano ficaram contra. Advogados impetraram mandatos, afinal eu sou brasileiro e morei no Rio, onde a homofobia saiu de moda e já é motivo de prisão. Começou um debate cívico sobre a diferença entre travestis e homossexuais. Ainda bem que aqui é civilizado, democrático, burocrático. Fizeram passeatas. Deus Pai teve que interromper seu descanso. Aliás, após um benchmarking em Brasília, Ele agora descansa quatro dias por semana, viaja dois e trabalha um. Enfim, chamou os outros dois, que inclusive andavam meio brigados, para uma reunião exclusiva da Santíssima Trindade. Nem os membros do Comitê Consultivo Celeste participariam. Só Maria foi autorizada, pois uma presença feminina é sempre importante em assuntos complexos como esse. Eu continuei meu show de Humor. Todo dia uma piada. Diversa e divertida. Só que empacado como Salomé. Até que foi perdendo a graça. Tudo que é muito do mesmo, todo dia, sem inovar, sem mudar, perde a graça... Você chegou na hora que a multidão, num tumulto total, exigia que eu trocasse de personagem. Mas imagina se faço um negócio novo naquela confusão... Só ia piorar!”
“E a reunião?”
“Resolveram que era melhor encomendar um estudo a ser discutido no Comitê Consultivo Celeste. Estão fazendo uma concorrência entre empresas de consultoria especializadas em milagres inovadores. Isso vai demorar... Creio que teremos tempo de ver muitas explosões galácticas... Millôr, nem adianta você tentar se registrar: o tal do ZAP só processa um finado de cada vez. Mudando de assunto: e lá na Terra? Fizeram alguma piadinha de mau gosto comigo? Algo tipo ‘do pó vens, ao pó retornarás’?”
“Pô... Sabe que até que não... Acho que você é tão querido que no seu caso os espíritos de porco foram respeitosos... Será que vão falar muito do meu uísque?”
“Sei lá... Tem sempre um pessoal metendo o nariz onde não foi chamado. Agora que me ´auto-sacaneei´... Enfim, foi o Veríssimo que disse que o Ser Humano é o único animal que ri de si mesmo.”
“É... E pensar que um dia o Veríssimo estará aqui conosco. Imagina a crônica que ele escreveria se soubesse o que estamos passando aqui. Mas relaxe: só falaram bem de você. E merecidamente. Você foi sensacional mesmo. Revi aquele seu texto, de anos atrás, que apresentou no “Fantástico”, sobre quando especularam que você tinha morrido... Divino, com todo o respeito. E aquele outro em que você ´criativizou´ sobre a vida mudando de rumo, em marcha ré, do fim ao começo. Eu me dei conta que, depois, os americanos fizeram um livro e um filme com o mesmo enredo. Benjamim alguma coisa... Assim como o standup comedy que Ari Toledo lembrou ser brasileiro e pirateado pela matriz, essa ideia de dramatizar a vida de traz para frente foi sua, certo! Ou foi você que plagiou o gringo, seu malandro do riso? Enfim, eu realmente deveria ter posto o verbete ´Chico´ no meu MILLÔR DEFINITIVO.”
“Mas você pôs... Só que foi o Caruso.”
“Já estou sensível e agora me alfineta... Reforça que acabo de lembrar que esqueci de você.”
“Tudo bem, cara; o importante é que você investiu, e bem, quase uma página do livro com o Sir-Ney. Aliás, acho que foi isso que nos permitiu estar na lista de entrada VIP do paraíso. Meu Codó e seu Sir-Ney. E você nem pode reclamar. Até que durou muito. Se vivesse no Maranhão, poderia ter vindo para cá mais cedo... Vai, Millôr, não faz cara de triste... Você sempre foi tão forte!”
“Nunca me preparei para quando fosse acontecer comigo... ´Tô com saudade da vida.”
“Se animar e me der um sorriso, eu faço uma cena inédita do Justo Veríssimo, exclusiva para você!”
“Faz o Caetano Codó e me deixa dar um soco na sua cara?”
“O Codó será o último personagem a entrar no Paraíso. Sem negociação.”
“Tá! Quer saber... Deixe-me ver aquele pôr do Sol múltiplo ali, que eu já melhoro! Ah, dá para me arrumar um Uísque?”

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