Chico Anysio: “Não tenho medo de morrer,
tenho pena.”
Millôr DEFINITIVO - MORTE (P. 317)
- Pensamento final, de todo o mundo: “Mas já? E
por que eu? Por que tão cedo? Por que assim? Por que pra sempre?”
- A morte mata. É sua função e ela a exerce. Ao
contrário da vida. Não existe a expressão; a vida vive. A morte me
apavora. Não só a morte final. Também, e sempre, a morte diária, o
resgate, tento a tento, do tempo que me deram de vida. A hora que passa. O
instante que flui (...)
Enquanto Millôr se aproximava do paraíso notou duas coisas: primeiro que
errara em ter sido ateu; segundo que isso não faria a menor diferença.
Caminhava e percebia que o mito terrestre de um “paraíso celeste” também fazia
sentido. Estava num local especial: mesmo a metáfora em que pensou, de um
cinema “1.440 graus em 4D”, deixava a desejar. Constantemente via pelo menos
uns duzentos pores concomitantes do Sol. Todos diferentes pois vivenciava
várias linhas de tempo conjugadas. Começou a entender o conceito divino de
onipresença quando percebeu várias explosões de supernovas, instantâneas transformações
de sóis em gigantes vermelhas, buracos negros em mútua “digestão”
gravitacional. Ao som divino de pássaros eternos.
Ao se aproximar de um portão de entrada, atentou-se a uma confusão
danada. Parecia haver uma celebridade no meio do tumulto. Havia: era o Chico, vestido
de Salomé e cercado por arcanjos guarda-costas que tentavam tirá-lo do meio da
multidão de almas humanas e criaturas divinas que o cercavam.
Assim que viu Millôr, que também era Fernandes, o Chico, que também era
Anysio, transmutou-se em Profeta Jesuíno. Jogou-se no meio da multidão e
conseguiu fugir.
O comediante pegou o escritor humorista pelo braço e disse: “vamos ver
algum pôr do Sol”. Descobri um lugar onde acontecem um de cada vez. Correram
calados.
Chegaram à beira de um lago e se sentaram sob uma árvore. Imediatamente
caíram em suas mãos lindas frutas, doces e saborosas. “Agora sei do que é feito
o tal manjar dos Deuses” – disse Millôr.
Chico falou: “Precisamos procurar o Tom”.
“Você vai cantar
agora?”. Balançando a cabeça, o morto mais experiente disse: ”Não. O
Jobim”.
“Eu topo; eu ´tô mesmo precisando
de um cachorro engarrafado para repensar meu ateísmo.”
“Millôr, você não ´tá entendendo...
Estamos vivendo – é... modo de dizer - o
maior paradoxo de todos.”
“ Me conta! ´Tô curiosíssimo!”
“Cara, Deus é brasileiro mesmo. Isso aqui é uma merda, mas é legal.
Precisamos falar com o Tom, que morou em NY e no Rio, e já deve estar lá dentro
há tempos. Ele precisa nos explicar como essa coisa funciona. Acho que é meio como
um purgatório entre o Brasil e os Estados Unidos, saca?”
“Não estamos no tal do Paraíso?”
“Estamos. Só que, se bem entendi, o inferno não existe. E esse paraíso
aqui é uma zorra total.”
“Como assim? Por que aquela multidão? Por que os arcanjos?”
“Até onde entendi foi o seguinte: quando eu morri deu algum problema no
sistema de TI e apareceram registros de todos os meus personagens. Os duzentos
e nove e mais alguns que nem eu mesmo me lembrava. Eu expliquei para eles que
devia haver algum erro, mostrei meu RG, habilitação, passaporte, carteira de
trabalho, CPF, certidão de nascimento, crachá da Globo. Mas tinham instalado um
novo software, chamado ZAP - ou algo
similar - e não teve jeito. Até agora
não entrei.”
“Como assim? Não dava para
consertar?”
“Que dava, dava... Mas especulavam que seria caríssimo. E parece que o
Espírito Santo já andara reclamando dos custos, cortando orçamentos. O Pai
convocou o Comitê Executivo do Paraíso, o ComExPar, para lidar com meu caso.
Vieram com a solução de eu incorporar cada personagem; eu entraria, e poderiam
dar baixa no processo específico; daí eu incorporaria o personagem seguinte e
seria expulso. Entraria como este novo, respeitando o procedimento do tal
sistema de informáticaa.”
“Deus me livre! Quero dizer... Acho
que Ele não vai conseguir, né? Que trabalheira?!”
“Na verdade, eu até que gostei... Um gran finale. E resolvi deixar o Caetano Codó para ser o último,
pois aí...”
“Pô Chico, ´tá de sacanagem comigo?! Homenagear político? E logo esse?
Meu mais eminente odiado?”
“Millôr, pega a piada. Imagina esse político no paraíso? Seria o meu
canto do cisne humorístico! O auge da ironia cômica! Depois eu entraria como eu
mesmo. A ideia era boa. O fato é que começamos; só que o tal do ComExPar não
pensou em algumas consequências. Na prática, a teoria é outra. Primeiro, um
monte de gente, muito acima da capacidade do lugar, se aglomerou. E o que
deveria ser um desentrave burocrático, um jeitinho brasileiro, virou um show de
Humor. Gente de mais e os arcanjos perderam o controle.”
”Caramba. Entendi!”
“Acha que entendeu... Até aí estava tudo legal, pacífico. O problema foi
quando incorporei a Salomé. Um vice-presidente levantou a mão e disse que
Salomé não podia, pois isso caracterizaria um travesti e pela política católica
tal e tal e coisa... O caso teria que ser levado a uma discussão no Comitê Consultivo
Celeste. O pior é que foi o mesmo executivo pretensamente onisciente que tinha
dado a inovadora ideia de como ‘burlar’ o sistema. Maria ficou do meu lado;
todas as almas de falecidos do partido republicano americano ficaram contra.
Advogados impetraram mandatos, afinal eu sou brasileiro e morei no Rio, onde a
homofobia saiu de moda e já é motivo de prisão. Começou um debate cívico sobre
a diferença entre travestis e homossexuais. Ainda bem que aqui é civilizado,
democrático, burocrático. Fizeram passeatas. Deus Pai teve que interromper seu
descanso. Aliás, após um benchmarking
em Brasília, Ele agora descansa quatro dias por semana, viaja dois e trabalha
um. Enfim, chamou os outros dois, que inclusive andavam meio brigados, para uma
reunião exclusiva da Santíssima Trindade. Nem os membros do Comitê Consultivo Celeste
participariam. Só Maria foi autorizada, pois uma presença feminina é sempre
importante em assuntos complexos como esse. Eu continuei meu show de Humor.
Todo dia uma piada. Diversa e divertida. Só que empacado como Salomé. Até que
foi perdendo a graça. Tudo que é muito do mesmo, todo dia, sem inovar, sem
mudar, perde a graça... Você chegou na hora que a multidão, num tumulto total,
exigia que eu trocasse de personagem. Mas imagina se faço um negócio novo naquela
confusão... Só ia piorar!”
“E a reunião?”
“Resolveram que era melhor encomendar um estudo a ser discutido no
Comitê Consultivo Celeste. Estão fazendo uma concorrência entre empresas de
consultoria especializadas em milagres inovadores. Isso vai demorar... Creio
que teremos tempo de ver muitas explosões galácticas... Millôr, nem adianta
você tentar se registrar: o tal do ZAP só processa um finado de cada vez.
Mudando de assunto: e lá na Terra? Fizeram alguma piadinha de mau gosto comigo?
Algo tipo ‘do pó vens, ao pó retornarás’?”
“Pô... Sabe que até que não... Acho que você é tão querido que no seu
caso os espíritos de porco foram respeitosos... Será que vão falar muito do meu
uísque?”
“Sei lá... Tem sempre um pessoal metendo o nariz onde não foi chamado. Agora
que me ´auto-sacaneei´... Enfim, foi o Veríssimo que disse que o Ser Humano é o
único animal que ri de si mesmo.”
“É... E pensar que um dia o Veríssimo estará aqui conosco. Imagina a
crônica que ele escreveria se soubesse o que estamos passando aqui. Mas relaxe:
só falaram bem de você. E merecidamente. Você foi sensacional mesmo. Revi aquele
seu texto, de anos atrás, que apresentou no “Fantástico”, sobre quando
especularam que você tinha morrido... Divino, com todo o respeito. E aquele outro
em que você ´criativizou´ sobre a vida mudando de rumo, em marcha ré, do fim ao
começo. Eu me dei conta que, depois, os americanos fizeram um livro e um filme
com o mesmo enredo. Benjamim alguma coisa... Assim como o standup comedy que Ari Toledo lembrou ser brasileiro e pirateado
pela matriz, essa ideia de dramatizar a vida de traz para frente foi sua, certo!
Ou foi você que plagiou o gringo, seu malandro do riso? Enfim, eu realmente deveria
ter posto o verbete ´Chico´ no meu MILLÔR DEFINITIVO.”
“Mas você pôs... Só que foi o Caruso.”
“Já estou sensível e agora me alfineta... Reforça que acabo de lembrar que
esqueci de você.”
“Tudo bem, cara; o importante é que você investiu, e bem, quase uma
página do livro com o Sir-Ney. Aliás, acho que foi isso que nos permitiu estar
na lista de entrada VIP do paraíso. Meu Codó e seu Sir-Ney. E você nem pode
reclamar. Até que durou muito. Se vivesse no Maranhão, poderia ter vindo para
cá mais cedo... Vai, Millôr, não faz cara de triste... Você sempre foi tão
forte!”
“Nunca me preparei para quando fosse acontecer comigo... ´Tô com saudade
da vida.”
“Se animar e me der um sorriso, eu faço uma cena inédita do Justo
Veríssimo, exclusiva para você!”
“Faz o Caetano Codó e me deixa dar um soco na sua cara?”
“O Codó será o último personagem a entrar no Paraíso. Sem negociação.”
“Tá! Quer saber... Deixe-me ver aquele pôr do Sol múltiplo ali, que eu
já melhoro! Ah, dá para me arrumar um Uísque?”
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